A corrupção, em qualquer uma de suas formas, é um sistema de domínio de interesses privados sobre os interesses públicos
O diretor do Hospital Pediátrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro permitiu que um repórter da TV Globo fizesse por dois meses as vezes de gestor de compras da instituição e filmasse as ofertas de propina feitas por empresas para ganhar o fornecimento de serviços. Uma sala administrativa do hospital público tornou-se uma casa do big brother, este não avisado aos atores. A longa reportagem exibida há alguns dias revela de modo didático como empresas privadas oferecem e viabilizam a propina aos agentes públicos e a embutem no preço final. Ela suscita duas considerações importantes sobre as relações entre o público e o privado no Brasil. Primeira consideração: a corrupção é antes de tudo um ciclo privado, um capitalismo underground. Empresas privadas expandem seus negócios através dela. Os gestores públicos corrompidos enriquecem, pois evidentemente não revertem o fruto do sobrepreço ao serviço público. Usam-no para comprar seus carros, suas casas, suas fazendas, e até para montarem seu próprio negócio, reproduzindo gerações de empresários que eternizam este sistema de roubo da sociedade. Há, em contraponto, muitas empresas privadas que trabalham para o setor público e ganham sem entrar neste jogo da ilegalidade, porque também há muitos gestores públicos que vivem exclusivamente de seus salários e pautam sua vida por um sincero espírito de servir à sociedade. O exemplo exposto pela TV Globo revela um tipo de corrupção, o tipo ilegal para o sistema. Ele não é o único. Há uma corrupção maior, feita através do sistema legal, fruto de complexos e poderosos lobbies, que não vamos abordar aqui para não perder o foco. São exemplos o ciclo mundial de privatizações nas últimas décadas do século 20, ou mais recentemente a desregulação do sistema financeiro na origem da atual crise econômica mundial. Se tivermos paciência de assistir ao filme Inside Job (Trabalho Interno) teremos uma ideia desta última. A corrupção, em qualquer uma de suas formas, é um sistema de domínio de interesses privados sobre os interesses públicos. O combate que se tenta fazer a ela, multiplicando camadas de órgãos estatais de fiscalização sobre o setor público não tem sucesso, porque parte do princípio errado de que o setor privado é honesto e o setor público é desonesto. A corrupção, que vem de fora, penetra também no sistema fiscalizatório, como tantas informações tem evidenciado. Além disso, vão se formando camadas e camadas de burocracia que engessam o Estado, prejudicam a sociedade, e abrem o caminho para dizer que só o privado é bom. Se o enfoque fosse controlar o enriquecimento ilícito privado, o menor e o maior, teríamos um caminho melhor e mais eficiente. Mas, a elite privada e sua ideologia permitiriam isso? Segunda consideração: a Globo fez este trabalho para vender notícia, por sinal bem feita, e para continuar sua saga de líder das mídias concorrentes. Mas deveria o diretor do hospital público ter chamado a Polícia Federal para fazer este serviço. Ela teria obtido as provas de forma legal, possibilitando no Judiciário a condenação exemplar das empresas, para que outras se retraiam desta prática pela perspectiva de punição. E depois poderia divulgar de forma exemplar à opinião pública através dos variados meios de comunicação. A Globo é uma empresa privada. Não é bom para a democracia que empresas privadas assumam as funções públicas. A concepção do Estado nas mãos privadas, quando reis e nobres juntavam o privado e o público, foi superado nas revoluções de mais de duzentos anos atrás. Como vimos na própria reportagem da TV Globo, as empresas corruptoras fazendo a ata da licitação assumiam o papel que cabia aos agentes públicos. Quando o repórter da Globo faz as funções de polícia, não está ele assumindo também funções públicas?