Mídia
Para ganhar no grito
Franklin Martins afasta o corpo da mesa, gira levemente a cabeça e
contorce os lábios em um de seus gestos típicos, um misto de impaciência
e desdém com um comentário que no primeiro momento lhe parece
irrelevante ou fora de foco. Ele veste jeans e uma camisa social, e tem
dedicado o “ano sabático” a escrever dois livros sobre a forma como a
música brasileira retrata a política, projeto interrompido quando
aceitou ingressar no governo Lula em 2007. Talvez tenha sido um recurso para ganhar tempo na elaboração da
resposta. Martins nem bem sentara à mesa de um café em Brasília, onde
topou o encontro após uma razoável dose de insistência minha, quando
observei que os meios de comunicação têm tentado nos últimos anos
impingir-lhe a marca de “censor”, de um autoritário disposto a
conspurcar o sagrado direito à liberdade de expressão. “É um reflexo
condicionado, ideologia”, começa. “A mídia brasileira não quer se
discutir nem deixar discutir. Mas não hácomoescapar, é inevitável diante
das mudanças tecnológicas. Ou fazemos um debate franco e democrático
sobre a regulação dos meios, com a participação de todos, ou prevalecerá
a lei do mais forte.” Desta vez e ao contrário do passado, desconfia Martins, a selva tem
um novo rei, as companhias telefônicas. “Em 2010, as empresas de mídia
faturaram 13 bilhões de reais. As teles, 180 bilhões. É fácil imaginar
quem vai ganhar essa disputa econômica se a -opção for o -vale-tudo, o
faroeste. O problema para a sociedade é que são enormes os riscos de uma
concentração ainda maior.” Esta é uma discussão deliberadamente distorcida pela mídia. Durante o
governo Fernando Henrique Cardoso, os donos dos meios de comunicação
barraram os projetos em acordos de bastidores. Por isso FHC é
considerado um “democrata”. Sob Lula não foi diferente, os grupos sempre
impuseram sua vontade no fim das contas, mas a antipatia do presidente e
de parte do PT pela maneiracomoforam tratados ao longo da década levou
as empresas a adotarem um discurso mais beligerante. Do confronto, mais
aparente que real, -vicejou a tese de um viés autoritário cujo objetivo
seria calar “a imprensa livre”. O ex-ministro lembra, com humor, de uma frase atribuída a ele durante
a conferência de comunicação patrocinada pelo governo para discutir um
novo marco regulatório. À época, jornais, revistas, tevês e rádios
reproduziramcomoverdade uma suposta frase sua: “Vou enfiar esta lei
goela abaixo da sociedade”. Ao mesmo tempo, as associações empresariais
anunciavam oficialmente a não participação na conferência. “Nunca disse
isso. Perguntei aos jornalistas de onde eles haviam tirado essa
informação. Ninguém conseguiu me responder, mas a pauta estava pronta.” Não foi a primeira vez, nem será a última, que frases e intenções são
arbitrariamente atribuídas a quem não as defende. Se existe um ato de
censura hoje em voga no País ele parte daqueles que se proclamaram
defensores das liberdades. Qualquer discussão a respeito da legislação é
logo interditada sob o argumento de uma suposta matriz autoritária. Não
adianta argumentar que nossas leis são antigas, confusas, não dão conta
das profundas e recentes mudanças tecnológicas. Nem que o setor, em
vários aspectos, vive na ilegalidade pelo fato de boa parte dos artigos
da Constituição referentes à comunicação nunca terem sido
regulamentados. Ou que os países desenvolvidos promoveram alterações
profundas em suas leis nos últimos 20 anos e que a Unesco, em relatório
independente, tenha apontado falhas graves que aproximam a legislação
nativa da completa barbárie. Discursar em favor da liberdade de expressão virou um cacoete – e
serve, em geral, para desqualificar propostas que desejam ampliá-la e
não reduzi-la. A insistência étantaque chega a produzir cenas
patéticas,comoa de uma repórter que viu no assassinato do cinegrafista
da Band durante uma operação no morro carioca, lamentável, mas parte do
risco profissional, um ataque à liberdade de imprensa. A realidade mostra, ao contrário, que o exercício do jornalismo nunca
foi tão livre no Brasil. Pode-se até afirmar, com base nos fatos, que
desde a decisão do Supremo Tribunal Federal de liquidar a Lei de
Imprensa sem regulamentar o direito de resposta, a mídia tem sido mais
algoz do que vítima de abusos diversos. Fora raras exceções a comprovar a
regra, não há poder capaz de contrastar a força dos meios. Liberais da
economia costumam comungar da mesma visão de mundo dos veículos de
comunicação, mas até esse grupo deveria refletir. Há uma distorção dos
mecanismos de livre mercado que prejudica o bom funcionamento dos
agentes econômicos. Após quase três décadas da volta dos civis ao poder,
e dos inúmeros choques produzidos na economia nacional, o setor de
comunicação continua um raro, senão único, setor a contar com fortes
barreiras protecionistas – e sua eficiência tem sido prejudicada por uma
crescente oligopolização e pela limitação a novos competidores. Nem regras simples adotadas na maioria dos países e previstas na
Constituição brasileira conseguem vigorar. Qualquer cidadão concordará: o
ideal para a democracia e para a economia seria impedir que um mesmo
grupo controlasse, em uma mesma cidade, emissoras de tevê, rádio e
jornais. É uma norma válida, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a
mídia nasceu e vicejou a partir da livre iniciativa. Também deve achar
razoável que políticos em mandato ou no exercício de cargos públicos
sejam proibidos de controlar meios de comunicação. No Brasil, isso não só ocorre,como existe uma simbiose secular entre o
controle da mídia e o poder político. Não se trata apenas do fato de a
Globo, noRio de Janeiro e em São Paulo, ser dona de tevê, rádios e
veículos impressos. Ou de a RBS, associada à família Marinho, dominar
as comunicações de forma horizontal, vertical e transversal no Sul do
País. Os herdeiros de Antonio Carlos Magalhães na Bahia e a família Sarney
no Maranhão, para citar os dois casos notórios, mas não isolados,
comandam os principais meios de comunicação em seus estados, a ponto de
sufocar qualquer concorrência empresarial e política. “É o único setor
da sociedade que combina economia e política. O detentor de um meio de
comunicação tem um poder que nenhum outro proprietário tem”, diz
Laurindo Leal Filho, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP.
“Essa situação, por si só, exigiria um olhar atento da sociedade. Há
ainda o fato de as frequências de rádio e tevê serem bens finitos,
pertencentes a todos os brasileiros. Portanto, não hácomocontestar a
regulação.” A influência política permite a concessionários se comportaremcomono
Velho Oeste. Ninguém em sã consciência acha normal que o proprietário de
uma concessão de uma usina hidrelétrica ou de uma frequência de
telefonia possa vendê-la a um terceiro sem que a transação seja aprovada
pelos respectivos órgãos reguladores – e em alguns casos as transações
são simplesmente vetadas. Mas é o que acontece, com frequência abusiva,
na radiodifusão (sem falar nos “laranjas”). E o que dizer davendade
horários na programação? Alguém admitiria ir ao cinema assistir a um
filme dos irmãos Coen e no meio da projeção ser obrigado a ver cenas de
ação de Jackie Chan? Pois acontece na maioria das tevês abertas e em
muitas rádios, que ganham dinheiro com o aluguel de largos espaços a
igrejas pentecostais. Essa burla à lei permite, por exemplo, à Record
concorrer de maneira desleal no mercado de televisão. A simbiose, de um lado, e o -simples medo, de outro, impedem que a
discussão- caminhe no Congresso -Nacional. O governo Fernando Henrique
Cardoso chegou a preparar três projetos de modernização da radiodifusão.
Todos engavetados. Lula acenou várias vezes com a possibilidade, até
que Martins, em sua última missão, organizou a conferência de
comunicação e dela extraiu os elementos de uma proposta. Na transição
para a administração Dilma Rousseff, o texto foi entregue ao ministro
Paulo Bernardo, que promete colocar a proposta em discussão pública a
partir de dezembro, embora o Palácio do Planalto tenha deixado claro não
se tratar de uma prioridade do mandato. O tema também não empolga os partidos. Uma frente parlamentar reúne
deputados de diversas legendas, mas as -cúpulas mantêm um claro
distanciamento do grupo. Há duas exceções, talvez. Após aprovar uma
resolução em seu congresso nacional, o PT patrocina na sexta-feira
25,emSão Paulo, um debate sobre o tema. A ideia é ouvir os movimentos
sociais a respeito e, em certa medida, se descolar do governo, que ainda
não encontrou a melhor forma de encaminhar a discussão-. Já o Psol foi a
única agremiação a encampar uma ação no Supremo Tribunal Federal
proposta pelo Intervozes, organização formada por jornalistas e
radialistas que há oito anos defende regras para ampliar o acesso aos
meios de comunicação. Na ação, a entidade civil pede que o STF exija do
Ministério das Comunicações o cumprimento do capítulo da Constituição
que trata dos políticos: quem estiver na ativa deve ser afastado do
controle de empresas do setor. Segundo João Brant, do Intervozes, a regulamentação dos artigos da
Constituição referentes à comunicação seria um grande passo para
garantir mais pluralidade e diversidade na mídia. Mas seria preciso, diz
ele, avançar em alguns outros pontos, entre eles a separação entre
infraestrutura e conteúdo na radiodifusão. É uma regra adotada na Europa
e nos Estados Unidos e, ironicamente, incorporada à lei de tevê por
assinatura no Brasil. Ela parte de uma constatação simples que tem o
poder de controlar os riscos de monopólio: quem distribui conteúdo, não
pode produzi-los. “Há uma tendência de concentração na mídia maior do
que em outros setores. E o pior: os efeitos não se dão apenas sobre a
economia. Eles afetam diretamente a democracia”, diz Brant. “Em
consequência, o setor deve estar sob constante vigilância e discussão.
No Reino Unido, as leis são revistas praticamente de cinco em cinco
anos”. Professor aposentado da UnB e um dos mais ativos críticos de mídia do
País, Venício Lima acha que a lei de tevê por assinatura expôs
novamente o ainda enorme poder político da Rede Globo. Segundo Lima, a
lei conseguiu limitar o avanço das empresas de telefonia, proibidas de
produzir conteúdo, enquanto na tevê aberta, a Globo sobretudo e as
demais emissoras continuam a ter o direito de controlar a transmissão e
ao mesmo tempo produzir o que irá ao ar. “Entre 35% e 40% dos senadores
são vinculados a concessionárias de comunicação. Não vejocomoas coisas
podem avançar.” Martins é mais otimista. Segundo ele, a lei de tevê por assinatura
estabeleceu um parâmetro para as -futuras discussões- de uma regulação
geral. Além de separar transmissão e conteúdo, estabeleceram-se cotas
para a produção nacional e regional a ser exibida, outro ponto da Carta
de 1988 ainda não regulamentado. “Na sociedade do conhecimento, haverá
uma oferta espetacular de informação. E o Brasil precisa se preparar.” Paraafastar o que considera um “bode na sala”, a tese da censura, o
ex-ministro propõe: “A discussão deveria se circunscrever a um conceito
simples. Nada que fira a Constituição e nada que engavete a
Constituição”. Martins afirma que os movimentos sociais evoluíram nos
últimos anos. Uma das provas seria o fato de a expressão “controle
social da mídia”, um conceito vago e autoritário antes repetido ad
nauseam, ter desaparecido do léxico dos defensores da regulação. Os representantes dos meios de comunicação continuam presos a velhos
mitos. Distorcem conceitos e declarações, omitem informações e têm
dificuldade em admitir que seu poder real e relativo se dilui por conta
dos avanços tecnológicos mundiais e das transformações sociais no
Brasil. Seria recomendável a leitura de um artigo de 1829 do jornalista
Líbero Badaró, intitulado Liberdade de Imprensa, relançado recentemente
em uma elegante edição de capa dura. A intenção de quem republica o
texto neste momento, um grupo de advogados paulistas, é inegável:
alinhar-se a quem enxerga riscos à liberdade de expressão no Brasil. Do lúcido texto é possível, porém, extrair outras lições. Badaró foi
assassinado por partidário de dom Pedro e seu artigo, uma crítica à
monarquia, concentra-se nos excessos do poder da realeza. Mas o
jornalista não deixa de comentar os abusos do jornalismo: “Nada há de
mais baixo, de mais vil, de mais criminoso, que mereça mais todo o peso
do público opróbrio do que aquele que prostitui a sua pena”. Dois
séculos depois, aqui estamos no mesmo ponto. Discutir de forma honesta a
modernização das leis poderia ser uma forma de a mídia brasileira
enfrentar seu pior inimigo: ela mesma.