Artigo: “A República, o feriadão e a Globo”, por Elói Pietá
No Jornal Nacional da TV Globo, o noticiário mais assistido do Brasil, na terça-feira (15 de novembro) não houve nenhuma referência aos 122 anos da Proclamação da República, razão do feriado que multidões de brasileiros emendaram.
Quanta gente ficou sabendo o motivo do feriado? Ouvi um taxista
dizer que era o dia da Bandeira. Que aproveitamento houve da data para
chamar a atenção sobre os grandes temas da democracia brasileira?
Nenhum. Se tivéssemos aqui uma espécie de BBC, um conjunto de canais públicos
de TV que se destacam na Inglaterra por grande audiência e grande
qualidade, certamente o nível da cultura e da democracia brasileira
seria maior. Não cabe interferir na programação e no conteúdo da Globo,
que apresenta programas de grande qualidade, como a matéria no mesmo
Jornal Nacional sobre a história do tráfico de drogas nas favelas do
Rio. Trata-se de ter uma concorrência à altura, de qualidade, encarada
pelo setor público, que tem vocação diferente do setor privado. Jamais
com a chatice da Voz do Brasil, não com a programação arrastada da TV
Brasil, nem com a grade ora infantil ora elitista da TV Cultura (que na
hora de um jogo da seleção brasileira apresenta algum debate no Café
Filosófico sobre o papel do riso). Os lobbies do setor privado da
notícia sempre se deliciaram com este tipo aborrecido de comunicação. E
com os mirrados orçamentos estatais para os canais públicos de TV. A BBC surgiu, como outras emissoras públicas na Europa, procurando
cultivar cidadania, democracia, arte, moral, ao tempo em que veiculavam
informação, seja qual fosse o objetivo ideológico- estratégico na
primeira metade do século passado, marcado pela disputa
capitalismo-socialismo e pela disputa entre si dos países europeus. A
sua autonomia do governo sempre foi uma batalha, às vezes mais bem
sucedida, outras vezes menos. Diferente foi o caminho brasileiro onde o setor privado se impôs
soberano no mundo da televisão. As emissoras comerciais surgiram para
arrecadar lucros, e, portanto tratar sua audiência como consumidores,
procurando incutir neles novas necessidades materiais e os valores
individualistas e consumistas. E depois se descobriram como empresas
donas de muito poder sobre a sociedade, sobre o Governo, sobre o
Congresso, sobre o Judiciário. A democratização dos meios de comunicação no Brasil significa
universalizar e impulsionar a imensa criatividade da cultura brasileira,
atender à pluralidade do pensamento, difundir as diferentes ideias
políticas, buscar um equilíbrio objetivo no que é informado e na maneira
como o é. No caso do feriado da República, daria para ter colocado em cena o
papel das Forças Armadas em nossa história, já que a República foi uma
transição por cima, um golpe militar que derrubou o Império desgastado
por vários motivos, entre eles, a abolição da escravidão um ano antes.
Daria para ter lembrado a revolta de Canudos, uma confusão entre revolta
social, religiosidade e monarquismo. Daria para lembrar as eleições de
presidente da República em que as mulheres e os analfabetos eram
proibidos de votar e então só uns 3% de brasileiros escolhiam o
presidente. Daria para ter lembrado as fases doloridas da República:
República Velha, ditadura Vargas, redemocratização, ditadura militar,
transição do Colégio Eleitoral, República atual, etc. Tem muitos filmes
bons com passagens sobre isso, tem muitos registros históricos
(quadros, fotos, áudio-visuais), tem bons debatedores, há muita
polêmica. Alguém dirá: mas já temos as TVs educativas. Só que elas que surgiram
como espécie de telecursos nada atrativos, com sinal de diminuta
potência, chamadas de educativas para mostrar ao poder privado que não
eram TVs completas. Apesar dos avanços tecnológicos, um estranho
fenômeno ainda é atual: a dura luta para ver com nitidez as TVs
públicas, que aparecem com qualidade de muitos anos atrás, ofuscadas
pela clareza, beleza e brilho das TVs privadas. Em São Paulo vejo uma
beleza de imagem e som nos canais abertos da Globo, SBT, Record, etc, e
sofro com a imagem e o som ruins da Cultura. Em Brasília, a mesma
decepção com a TV Brasil. A pobreza de periferia reservada para as TVs
públicas não ocorre por acaso. É caso pensado. É a arrogância do setor
privado impondo-se à humildade temerosa do setor público. Se tivesse uma TV pública com a mesma qualidade e audiência da Globo,
na reunião de pauta do Jornal Nacional no dia seguinte ao feriadão da
República, alguém ia ter um puxão de orelha. Não porque o governo
tivesse interferido. Porque o público brasileiro teria gostado da TV
pública, e porque os anunciantes da TV privada teriam reclamado da queda
de audiência. Estamos atrasados em décadas com este sistema manco de comunicação.
Temos que fortalecer o sistema público para concorrer com o sistema
privado. Vimos o quanto isso é importante no setor bancário, para
contrabalançar o poder da finança privada na economia. E quando se trata
do espírito, da informação que fundamenta opiniões e ações? Precisamos
de um país mais republicano do que este que temos.
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